A infinita capacidade de fabular

 


Minha tia está a poucos meses de completar 90 anos. Há muito convivemos na mesma casa e aos poucos, fomos perdendo membros da nossa família. Falo em pessoas do nosso tronco mais próximo. Eu perdi mãe, pai, avós, tios. Ela, mãe, irmãs e marido.  Ficamos as duas, num jogo de resta um. Nos últimos tempos, as circunstâncias nos tornaram reclusas em casa. Então, somos nós em tempo integral. Ao contrário do que muita gente pensa, não é um problema pra mim. É uma possibilidade de aprendizado, como quase tudo que me aconteceu na vida. É a minha forma particular de superar seja o que for: entendendo.

De uns tempos pra cá venho pondo mais atenção numa habilidade da titia, que não é recente, mas tem sido evidenciada por razões óbvias. Ela fabula situações. Explico. Ela discorre sobre fatos, em sua maioria autênticos. O interessante é que quando paramos pra ouvir a história percebemos que pode ser que, apesar de o enredo estar coerente, o desenvolvimento tem um que de ficção. 

Essa percepção se dá pela riqueza de detalhes dos diálogos, em geral extremamente longos, que irritam a narradora quando não damos a devida atenção. 

Meu sobrinho postiço é o campeão de temas dessas fabulações, algumas recorrentes, com ligeiras alterações a cada narrativa. Ele foi uma criança caladinha, avesso a longas conversações . Até hoje, ele nos concede  algumas poucas palavras e expressões, após um esforço de diálogo. Tipo: "é", "sim", "não", "hum hum", por ai vai. Mas a titia, reproduz altas conversas entre os dois com trocas de pensamentos, sentimentos e vocabulários que, com certeza , o Júnior não conhecia, ainda mais na idade em que os fatos narrados estavam ocorrendo.

 Mas coitado de quem ousa questionar, muito menos contestar essas "nítidas" lembranças. Uma vez, só de birra, comecei a  indagar essas histórias. Noooossa! Ela ficou tão brava que ameaçou deixar de falar comigo. Sem contar a enxurrada de  acusações sobre a minha pessoa que ela  chamou todos os finados parentes para embasar as situações.

 Se engana quem pensa que ela está caduca. Ela tem uma memória para coisas que aconteceram no passado, muito melhor que  a minha. Não lembro te ter ouvido alguma narrativa que não tenha sido real, mesmo aquelas de sua infância e mocidade, em que eu ainda não existia. É na narração das coisas que mora a fabulação. São as possibilidades de diálogos (longos) que poderiam ter existido.

Então, fico pensando o quanto dessa habilidade vai permanecer em mim, que já estou envelhecendo. Serei uma fabuladora da memória também? Custo a acreditar já que o esquecimento das coisas mais corriqueiras é cada vez mais banal em mim. 

Consigo entender (ou fabular?) que essa atitude pode ser  uma forma instintiva de inovar, Já que os fatos novos são escassos  e que uma pitada de interpretação seja um modo saudável de deixar a vida cheia de atividades.


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